quinta-feira, 12 de julho de 2012

Torquato

Esse rapaz se chamou Torquato, seus amigos o conheciam como Pereirão, o que na verdade não chega perto de vir ao caso, pelo menos pra o que vamos falar sobre ele aqui.
Sua rotina nos últimos anos tem sido composta de pouco sono, trabalho e parcelamento de cartão de crédito, uma rotina massante, repetitiva, exceto pelas catástrofes pessoais que as vezes se convidam pra entrar num nível mais extraordinário, isso sim tira Torquato da rotina.
O escritório de contabilidade vai bem, sendo proprietário de tal negócio pode-se ter uma boa liberdade financeira, o que proporciona um status diferenciado na sociedade, pena que Torquato não o é, sua função é fazer lançamentos num livro que nem ele mesmo sabe como funciona, são capas pretas em brochura numa estante de metal cinza que vai até o chão. Para se ter uma ideia, se uma criança de cinco anos entrasse na sua sala e a fosse pedido que chutasse um número para a quantidade de livros na estante de Torquato, ela provavelmente diria novecentos e noventa e nove, ou um trilhão, ou "cem!", que para ela significariam a mesma coisa na verdade.
Não, Torquato não é casado, mas ainda assim possuía um anel no anelar. Quando ele tinha seus vinte e poucos anos leu Código daVinci e decidiu que queria ser maçom, no entanto não conheceu nenhum membro para que pudesse indica-lo a ingressar na ordem, por esse motivo não titubeou ao comprar um anel muito parecido com o dos maçons quando lhe foi oferecido por uma sexagenária obesa no salão de cabeleireiros onde corta o cabelo, num daqueles estojos de enrolar, feito de tecido preto peludo que dão a impressão de guardar preciosidades de valor incalculável, mas que todos sabemos preferirem se reservar à modéstia de portar humildes bijuterias.
Torquato não tem vida afetiva, no ano passado teve um breve caso com uma boliviana que trabalhava no armarinho e que sumiu de um dia pro outro, sem nenhum aviso, ele não acha que ela tenha sido assassinada, sequestrada ou que tenha saído pra comprar pão e caiu numa ribanceira morrendo despercebidamente, mas diz achar.
Se fossemos criar uma equação com os fatores, parcelas, dividendos, bases e potências que representam as variáveis da insegurança de Torquato, teríamos algumas páginas com complexos símbolos matemáticos, mais algumas com legendas e referências a esses símbolos e mais algumas com asteriscos referindo outras referencias nas referências, isso além de mais algumas linhas de post-scriptum para detalhes que não se conhece a origem ou que foram simplesmente dados como fato. Esse não é o nosso objetivo aqui, já temos uma idéia do quão inseguro Torquato é e do quão patético isso o torna para os outros. Tatuagem de ideograma, comprar as roupas iguais as do Jean Reno em O Profissional, anel falso de maçom, lente de contato azul, uma tragédia animada por um raio divino de vida, e de pena.
Contudo algo salva Torquato do limbo da escória, que é uma tímida e deficiente perspicácia que dá as caras de vez em quando com suas muletas, coisa que dessa vez permitiu uma auto-análise muito breve da sua pessoa, uma consciência que surgiu dessa vez com motivação suficiente para tentar dar cabo dos seus complexos de inferioridade.
Seu colega de trabalho e único conselheiro, Júlio César, que é a completa antítese da imagem do seu nome de pompa, lhe disse com ar de mestre que para ser mais bem sucedido deve-se acreditar em si mesmo, ter confiança na própria capacidade, "nós podemos ser tudo que quisermos". Nosso mancebo, mesmo já tendo ouvido aquela máxima motivacional mil, um trilhão de vezes, seja em filme infantil ou em livro de auto-ajuda, desta vez se sentiu tocado pelas palavras do amigo de um jeito que nunca tinha sentido antes, Torquato percebera que chegara no limite de sua infelicidade, agora teria de mudar as coisas, tomar uma providência definitiva.
Segurança plena, total, ser tudo que se almeja, esse era agora o mais novo objetivo dele.
Depois do horário de almoço, ao voltar para o prédio da empresa, Torquato apertou o último botão do elevador, foi até a sala do sub-gerente de setor e, ao bater e ser instantaneamente autorizado a entrar, ele se surpreende com o tamanho da sala do seu chefe, percebe o monitor do seu computador, um sansung syncmaster 753dfx com tela semi-plana, um ventilador novíssimo e um banquinho para apoiar os pés. Com o deslumbre o pequeno verme realiza de uma vez por todas onde quer chegar. Agora Torquato já sabe o que quer ser, tem uma certeza no seu horizonte e pretende alcança-la a qualquer custo.

- Torquato, né?
- Sim.
- Eu posso te ajudar em alguma coisa?
- Sr. Alves, quero me candidatar a supervisor, ainda há tempo?
- Tem certeza? Você tem algum curso ou especialização.
- Não, mas eu sou capaz.
Aparece um sorriso que fugiu disfarçado na cara do sub-gerente, que saiu não tanto por duvidar da capacidade do sujeito, mais pela frase que rasga um cashmere de pieguice.
- Tudo bem, como quiser, quer fazer a entrevista amanhã junto com os outros candidatos a vaga?
- Pode ser.
- Ok, até amanhã, chegue aqui as três.
- Até.

O riso do seu chefe não passou despercebido, Torquato não conseguiu não se deixar abalar por achar ter sido subestimado, e agora faria questão de usar de todas as suas forças para se provar capaz.
Nesse dia, ao chegar em casa, sentou-se e leu o regulamento de supervisão do escritório sobre o qual provavelmente seria questionado na entrevista no dia seguinte e, depois de meia hora lendo, se levantou e  se pôs aos gritos, mantras motivacionais na frente de um pequeno espelho em sua sala.

"Você pode, você consegue, segurança, confiança é tudo que você precisa. Força Torquato!"

A cena era digna de um manicômio, mas quem olhasse lembraria mais de uma peça sub-lotada de teatro contemporâneo, a impressão que dava era a de que se alguém entrasse repentinamente se liquefaria em segundos como uma lesma salgada, de incômodo e vergonha daquela situação.
A cena consistia de um corpo ovoide todo contraído portador de um obsceno cavanhaque, sem camisa, socando seu próprio peito incessantemente e que por vezes parava e pulava em semi-polichinelos dizendo "relaxa...", e quando voltava a sua pobre rigidez gritava palavras como "Raça! Confiança!".
As três da manhã foi dormir um sono cansado do esforço físico que o flagelo de se socar durante 5 horas lhe provocara.
Já no dia seguinte, com a sua melhor roupa, Torquato entrou no ônibus em direção ao seu trabalho, no qual durante toda a primeira parte do dia Julio Cesar o aconselhou "Força, confiança, Pereira!".
Torquato estava pronto.
As quinze horas pegou o elevador para o andar da sala do sub-gerente, na sala de espera olhou com soberba para os outros candidatos, eram três, que ansiosos folheavam revistas sobre famosos em ilhas paradisíacas.

- Boa tarde senhores, entrem.

Alves, num semblante de impaciência pediu aos candidatos que se sentassem em cadeiras escoradas na parede. Num repente outros 6 sub-gerentes entraram na sala sem bater e também se acomodaram em cadeiras, porém na parede oposta, de frente para os quatro candidatos.

- Senhores - disse o sub-gerente Alves - gostaríamos que cada um de vocês fizesse uma breve apresentação sobre o regulamento de supervisão, citando as regras e suas funções. Para tal obedeceremos a ordem alfabética assim começaremos com o Carlos, depois Henrique, Jorge e por último Torquato. Por favor, Carlos, fique a vontade.

As apresentações intimidaram o reumático intelecto de Torquato, pessoas traquejadas, falantes, gesticulando um balé de mãos no meio de finos discursos. Jorge então, seu último antecedente, era quase um mestre de cerimônias, uma voz grave e potente complementava uma aparência de bom genro, era simpático e inteligente.
Torquato, em meio a todos aqueles escombros de desânimo, conseguiu achar forças para emergir e levantar da sua cadeira, ao vagarosamente se dirigir ao centro da sala onde faria sua derradeira apresentação o rapaz começava a se transformar, esboçava um semblante de mal, impiedoso, mas que emoldurado por aquele gel nos cabelos microcacheados não fariam medo a um labrador.

No centro daquela sala alguma coisa acontecia, um homem se concentrava para fazer algo, musculos se contraiam como no dia anterior na frente do espelho e com isso uma incrível aura de cor azul circundou Torquato. Todos na sala se assustaram com aquilo que só poderia vir de fonte sobrenatural, aquela energia azul em volta do franzino candidato se tornava a cada segundo mais densa. Os demais concorrentes se puseram a gritar desesperados, os gerentes tentavam sair amontoados na porta. O ar se movia, ventava dentro da sala, os cabelos e gravatas eram jogados pra trás, papéis voavam para o chão, quando de repente, num grito estridente de auto-confiança, Torquato se transformou numa enorme pedra, numa rocha de granito polido, cúbica, gigantesca. Os ventos cessaram e os papéis e gravatas repousaram, assim, ao se acalmarem, depois de alguns momentos de silêncio todos na sala aplaudiram, se emocionaram, choraram, admirados com a incrível capacidade do rapaz, que antes lançava dados em livros de registro contábil e que agora desabrochara em um imponente bloco de granito. Em minutos todos os funcionários do prédio se colocaram em fila na porta para ver Torquato, de presidentes a faxineiros, em questão de horas o boato havia se transformado numa multidão de repórteres e câmeras saindo de vans adesivadas. Até sua ex-amante boliviana voltou e chorou aos pés da pedra jurando amor eterno, cartazes foram colados em suas faces lisas e até judeus encostavam suas cabeças e rezavam.