"Acordei sedento, sede
natural ao contrário. O parasitismo exercido pelo mundo exige sua
água.
O Firefox só é usado
nessa quitinete para a navegação privativa, sem registrar no
histórico.
O maço vazio de free serviu de reservatório
improvisado e a sede foi saciada.
Primeiro dia da nova empregada,
dez da manhã a campainha toca, ela me olha com ar de surpresa e fala
gírias. Suas pernas são surpreendentemente finas e revestidas
naturalmente por pêlos que provavelmente ela penteia e passa
condicionador, sua calça é do tipo de ginástica e parece ter sido
cortada nas canelas. Ela me olha com simpatia exagerada do alto do
seu leve estrabismo e entorta seu cabelo, de fiapos com tanta memória
quanto argila, para trás da orelha, logo associo sua sedução ao
novo corte que o barbeiro me fez, a careca foi suavizada por um
penteado menos grosseiro, um degrade de decrescimento até o topo
chapada estéril do meu cocuruto. Óbvio que é por isso que ela me
olha desse jeito, mulheres se atraem por homens vividos e com charme
diferenciado.
A faxina é diária e
custa 40 reais, caro demais pra um apartamento de um cômodo aqui no fim e eu já deveria ter suspeitado que mesmo sendo
atraente aos seus olhos seria difícil negociar. Minha padaria predileta fica a 10 minutos da portaria e depois de caminhar até lá monto algumas desconfianças com as informações aleatórias do lugar: Deixei a gaveta destrancada, tem 350 reais e os anéis de mamãe. Joguei fora o maço de free sujo? Que valor aquilo teria para uma aproveitadora mal caráter com pernas tão imbecis? Essa mulher tem o poder de acabar com a minha vida se utilizando daquele maço de cigarros. Ainda que desesperado, me alimento calmamente do pão com presunto na chapa, com atenção, sem esquecer de deixar o meio do pão pro final, a parte mais gostosa. esqueci de lavar a mão. O que se sucede na volta pra casa eu não pude segurar, a preocupação é tão aguda que volto num passo abissal, que soa de tão pesado.
No meio do longo
caminho encontro um vingador contra o mundo parasita, quase um mimetista, um entre muitos homens bomba, que com uma caixa de jujubas na mão
me pede que pague um pão. Já esperando suas maldições travestidas
de “deus te abençoe” eu imediatamente disse não. Olhei e sua
frente era tosca, lhe faltava um suposto dente central na arcada
inferior, os outros decidiram tentar cobrir sua falta e se inclinaram
para dentro, de modo a formar um buraco triangular do qual poderia a
qualquer momento sair algum tipo de molusco que tenha gostado
de viver naquela cavidade úmida. A resposta ao meu 'não' foi uma
vitimação quase mexicana:
- Po, to cheio de fome.
Não
respondi.
Na pastelaria chinesa perto do shopping comprei um joelho,
brioche em Petrópolis, italiano em Niterói, a aparentemente óbvia inseminação caseira
da empregada não foi o suficiente para fazer com que eu esquecesse tão rápido aquela criatura áspera (após sua morte sua pele deveria ser utilizada para lixar massa corrida), peguei o rumo de volta ao golem parecido
com o que vi em um livro na infância. No regresso quase kardecista desejei
que o monstro não estivesse mais lá, no entanto na iminência do
seu encontro levei um soco do inconsciente, tudo que desejava era sua
presença de novo e que aquela boa ação, como oferta a alguma
divindade egoísta, fizesse com que aquela serviçal quasímodo não
fosse ter um filho meu. Ele ainda estava lá, perguntou ao ver o embrulho:
- É o pão?
- É.
A rigor joelho não é pão, mas a massa é parecida, esperei
que a oferenda modificada por alguns ingredientes tivesse valido. Aquele sorriso aparentemente formado por canjicas e moedas gastas de 5 centavos (das novas, marrons) alinhadas a
esmo, me deprimiu instantaneamente. Contudo a sensação boa e
egoísta do falso altruísmo fez o meu sofrível melancólico,
delicioso.
A empregada já tinha
jogado tudo fora em sacos no canto da porta, estava agora com um
escovão na privada do meu micro-banheiro. Os sacos de lixo, que
fingi presteza ao jogar fora, foram por mim vasculhados no corredor do
prédio antes de deixa-los na lixeira, o maço estava intocado na sacola suja, ela nem percebeu o que tinha
dentro, o líquido já fora em parte absorvido pelo papel.
Não funcionou, pão
não é joelho, é parecido mas a massa é
diferente, vi na internet usando o google chrome.
350 reais foi uma pechincha."